O local era o estádio El Morro, em Talcahuano, um dos lugares pioneiros na prática do futebol no Chile e “primeiro porto militar industrial e pesqueiro” do país, como diz o lema da cidade. Era um dia de janeiro de 1914, e a bola veio alta para o meio de campo. Viajou até a uma altura pouco acima das cabeças dos jogadores, e foi chutada de maneira extraordinariamente inédita. Um daqueles homens saltou de costas para o chão, colocando uma das pernas a um ângulo de aproximadamente 90 graus e arrematou a bola acrobaticamente por cima de sua própria cabeça. Era o início da história de um dos lances mais belos e emblemáticos do futebol. O chute de bicicleta.
O autor dessa obra foi Ramón Unzaga Asla, um basco nascido em Bilbao em 1894. Em 1906, aos 12 anos, foi levado por seus pais ao Chile, se estabelecendo em Talcahuano. Lá, se formou em contabilidade e passou a trabalhar em uma mineradora. Em 1912, aos 18 anos, adotou a nacionalidade chilena e começou a jogar futebol em pequenos clubes amadores da cidade. Também praticava outro esportes, como natação, pólo aquático e atletismo, onde era um exímio saltador. Ganhou diversas competições em todos eles, mas foi jogando futebol que entrou para a história ao criar a chilena, que se tornou conhecida no Brasil como “bicicleta”. Inicialmente, o lance foi apelidado de chorera, em homenagem à equipe local, apelidada de Escuela Chorera, pelos inúmeros talentos que formava. Posteriormente, no Sul-Americano de 1920 em Viña del Mar, no Chile, o lance recebeu o apelido de chilena da imprensa argentina, e foi ainda mais popularizado por David Arellano, histórico jogador do Colo-Colo.
Unzaga estreou na seleção nacional em 2 de julho, na primeira partida do Sul-Americano de 1916, saindo com uma derrota por 4 a 0 frente ao Uruguai. Chamou a atenção de vários clubes argentinos e uruguaios, mas sempre negou qualquer investida, tendo atuado apenas no Club Atletico Estrella del Mar (clube que é chamado hoje de Club Deportivo Nueva Estrella del Mar). Marcou um único gol pela La Roja, em um amistoso contra a Federação Platense. Mas errado está quem imagina que Unzaga praticava a jogada com o intuito de marcar gols, como passou a ser a principal função da bicicleta. Unzaga era centro-médio,(atuando na linha de três do 2-3-5, ou sistema clássico) e utilizava desse artifício para rechaçar a bola o mais distante possível – lance similar no Brasil era chamado de Belfort, por conta de Belfort Duarte.
“Seus interesses eram trabalhar, estudar e jogar. Era um basco com todos os defeitos de um basco, como o gênio ruim, que lhe deram vários problemas dentro e fora dos campos”, disse seu neto, Ramón Unzaga Muñoz, em uma entrevista ao jornal chileno La Tercera. Certa vez, após ser advertido pelo árbitro por praticar a chilena, tentou argumentar que a jogada era legal. Acabou expulso de campo, e não saiu sem antes trocar alguns socos com o juiz. Em outro lance de expulsão, Unzaga voltou ao gramado com uma pistola dando tiros pra cima e encerrando a partida. Muñoz, que atua como professor universitário, foi obrigado a seguir carreira universitária por seu pai, Ramón Unzaga Zapata, que jogou como goleiro profissional.
Por incrível que pareça, Ramón Unzaga Asla faleceu muito novo, com apenas 29 anos no dia 31 de agosto de 1923, vítima de um ataque cardíaco. Em Talcahuano, o estádio El Morro recebeu o nome de Ramón Unzaga Asla, e hoje há um monumento em homenagem ao criador e à criatura, inaugurado em 2014, por ocasião do centenário da jogada que encanta a todos por sua plasticidade.
Texto postado originalmente em 29 de novembro de 2015 e editado em 12 de maio de 2019.