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Conexão Uruguai

Certamente, ao conferir a ficha de algum jogador famoso em sites, revistas ou jornais, você já deve ter se deparado que alguns destes possuem passagens ou vínculo com clubes uruguaios como Deportivo Maldonado, Rentistas e Central Español. Um grande exemplo atual é o do atacante Willian José, atualmente no Las Palmas, da Espanha, e com passagens por São Paulo, Santos, Real Madrid e Zaragoza. Em todas essas equipes, Willian José atuou por empréstimo, sempre vinculado ao Deportivo Maldonado. Assim como o lateral-esquerdo Alex Sandro e o meia paraguaio Marcelo Estigarríbia que, junto de Willian José, renderam aos cofres do pequeno clube uruguaio cerca de US$ 14 milhões de dólares. Por quê? Basicamente, os jogadores citados são empresariados por Gustavo Arribas, recém escolhido pelo presidente argentino Mauricio Macri como titular da Agência Federal de Inteligência (AFI), que utiliza o Deportivo como intermediário para negociações e não vincula os direitos econômicos a nenhum investidor, algo proibido pela FIFA a partir deste ano. Entretanto, este não é o único motivo para tal procedimento. Realizar a chamada “conexão Uruguai” faz das negociações algo mais rentável para jogadores, empresários e clubes.

Primeiramente, vamos entender por que o Uruguai é atrativo a este tipo de operação. O país sempre foi considerado uma espécie de paraíso fiscal do cone sul. Por possuir uma política tributária flexível, passou a ser sede de inúmeras companhias offshore (entidades situadas no exterior, sujeitas a um regime legal diferente, “extraterritorial” em relação
ao país de domicílio de seus associados). Não fosse apenas isso, o regime econômico uruguaio sempre foi constantemente criticado pela falta de transparência. Recentemente, o Uruguai tem buscado ações que diminuam essa má imagem. A partir de 2011, por exemplo, o governo local tomou medidas de transparência fiscal que culminaram na retirada do país da chamada “lista cinza de paraísos fiscais”, da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). É curioso também que o Uruguai não é listado pela Receita Federal Brasileira como paraíso fiscal ou país com regime fiscal privilegiado. Ainda assim, é considerado um ótimo lugar para aplicar investimentos.

E é aí que os empresários do mundo da bola encontram vantagens e realizam uma escala no Uruguai antes de vender os jogadores ao futebol europeu. O atleta é vendido por um preço baixo para clubes do país vizinho e de lá são negociados por valores muitas vezes superior, onde a carga tributária sobre o valor da venda é bem menor, além da
possibilidade de conferir comissões a terceiros. Na Argentina, por exemplo, paga-se até 35% do valor total de uma negociação em impostos. No Uruguai, esse valor cai para 12,5%. No Brasil, de acordo com dados fornecidos pela assessoria de comunicação da Receita Federal, os clubes brasileiros estão constituídos como associações, não
havendo, portanto, incidência de IRPJ (imposto de renda pessoa jurídica), CSLL (contribuição social sobre o lucro) e Contribuição para o Pis/Pasep e Cofins sobre receita bruta/faturamento. Entre as receitas isentas estariam as captadas com direitos econômicos nas transferências de atletas para outros clubes. Ocorre que podem haver cessões,
totais ou parciais, dos direitos econômicos dos atletas para outras entidades empresariais, as quais então seriam tributadas no recebimento de tais valores. Atualmente, apenas a alíquota do CSLL, por exemplo, é de 9% para pessoas jurídicas em geral. Entretanto, a assessoria da Receita destaca que eventuais operações do gênero podem configurar
infração tributária ou penal. Outro fator determinante para a realização dessas operações, segundo o jornalista uruguaio Ricardo Gabito Acevedo, autor do livro “Pacomafia vs. DGI” e profundo crítico da Asociación Uruguaya de Fútbol, é que além dos controles do Estado serem quase inexistentes, a AUF, por sua vez, não faz nenhum tipo de auditoria contábil com os clubes, ainda que isso seja uma exigência do estatuto da entidade.

Um dos principais empresários do futebol nacional é o uruguaio Juan Figer, que jamais foi condenado por alguma prática ilegal. Figura obscura, faz a intermediação de transferências de jogadores de futebol desde o final da década de 60 e foi o primeiro agente regulamentado pela FIFA no país. Em entrevista à Revista Placar, em 2011, o ex-
presidente do Central Español, Fermín Vega Torres, relatou ameaças sofridas por parte de Juan Figer, após recusar contribuir com as transferências dos atletas agenciados por ele. “Em troca de uma ajuda de 8 mil dólares mensais, assinei documentos sem ler por dez anos”. Entre os nomes dos principais jogadores que passaram pelo Central Español
através de Figer, estavam o ex-zagueiro Ricardo Rocha e o ex-meia e atual treinador Silas, que inclusive teve que jogar algumas partidas pelo pequeno clube.

Depois disso, Figer foi acusado de também utilizar o Rentistas. O caso de maior repercussão foi a do então lateral-esquerdo Zé Roberto, que saiu da Portuguesa para o poderoso Real Madrid, em 1997. Na época, a Receita Federal brasileira informou que havia claros indícios de ilegalidade na negociação, como a ocultação de valores para
pagar menos impostos ou o desvio de dinheiro. Ainda segundo a Receita, os valores chegariam a 5 milhões e 300 mil dólares. Entretanto, nenhuma ação judicial foi levada adiante. Desde aqueles tempos, o empresário utilizava algumas brechas da legislação. Até então, o passe de um jogador no Brasil não poderia pertencer a uma pessoa física, por exemplo. No início dos anos 2000, inclusive, Figer foi levado a depor na famosa CPI da CBF/Nike, interpelado por suspeitas de evasão de divisas e sonegação, mas, novamente, não houve continuidade em nenhuma ação incriminatória.

Também no início dos anos 2000, o Atlético-PR realizou uma parceria com o Rentistas e diversas negociações passaram por essa triangulação, como a dos laterais Alberto e Fabiano, a do volante Cocito, a do meia Adriano Gabiru e a dos atacantes Lucas e Alex Mineiro. Nos últimos tempos, podemos citar o selecionável Hulk, agenciado por Figer, e o
atacante Walter, ambos com seus direitos econômicos vinculados ao Rentistas e negociados com o Porto, de Portugal. Em entrevista ao Portal R7, dada em 2014, Figer foi categórico. “Não sou proprietário de nenhum clube nem tenho participação econômica ou financeira ou de qualquer natureza em nenhuma agremiação”.

Os argentinos também utilizam desta brecha legal. Em 2012, por exemplo, o Sud America repassou por empréstimo Fernando Ortiz ao Racing, Víctor Zapata e Jonathan Santana ao Independiente e Ignacio Piatti ao San Lorenzo. O Fénix negociou Facundo Roncaglia com a Fiorentina, emprestou Denis Stracqualursi ao San Lorenzo e Emmanuel
Gigliotti ao Colón de Santa Fe. O Club Atlético Progreso emprestou Román Martínez ao Estudiantes. Negociações aparentemente normais, tirando o fato de que todos os jogadores citados jamais pisaram no gramado das canchas uruguaias desses clubes. Mesmo em negociações entre equipes europeias, isto pode acontecer, como na
transferência do uruguaio Bruno Fornaroli, da Sampdoria para o Panathinaikos, com escala no desconhecido Boston River, da segunda divisão do Uruguai.

Recentemente, a FIFA puniu o Sud América, do Uruguai (multa de 40 mil francos suíços – R$ 100 mil – e proibição de negociar nas duas janelas de transferências seguintes), por negociações de jogadores em curto período de tempo e por valores acima do comum com os argentinos Central Córdoba, Independiente (punidos cada um em 50 mil francos – R$ 125 mil), Rosario Central (20 mil francos suíços – R$ 50 mil) e Racing Club (15 mil francos suíços – R$ 62,5 mil). Porém, a entidade máxima do futebol não inibe esse tipo de prática de maneira eficaz e intensiva. No Regulamento de Transferências da FIFA não há nenhum artigo específico para esse tipo de operação, deixando o futebol
sul-americano ainda mais refém de empresários e cartolas.

Texto originalmente publicado em 2016, no site Doentes por Futebol.

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