Por Felipe Augusto, editor da Revista Série Z
“Ele partiu, bateu e gol. É um gol histórico para o futebol nacional. Straden marca de pênalti”. Essa é uma narração fantasiosa de como poderia ter sido a mensagem passada por um locutor de rádio após a seleção estadunidense marcar o primeiro gol em um jogo oficial contra a Estônia, nas Olimpíadas de 1924. Em Vincennes, subúrbio parisiense, era 25 de maio quando a vitória veio, oito anos depois da seleção fazer os primeiros amistosos. Bem longe dali, mas com influência francesa, um bebê que completava apenas o segundo mês de nascimento era criado por Edmond e Antonine Defay em algum ponto de Porto Príncipe, capital do Haiti. Seu nome era Joe Gaetjens. Naquele momento, não possuía preocupação alguma, apenas ser amamentado, dormir e desesperar os pais quando chorava por motivos que não se faziam ideias, características naturais de uma criança de apenas 60 dias de vida.
Haitiano, Gaetjens teve uma vida influenciada pelo contexto político durante os anos que esteve vivo. Ele nunca se envolveu com a política, mas essa quis fazer parte da vida dele. Os Estados Unidos e o Haiti tinham uma relação. Entre 1915 e 1934, os americanos ocuparam o país, após Vilbrun Guillaume Sam, sanguinário presidente ser morto por insurgentes opositores ao regime antidemocrático e com um receio de que os alemães ocupassem o país antes. Em meio a tudo isso, a preocupação de Joe era outra: jogar bola.
Haiti > EUA > Brasil
Presente nas duas primeiras edições da Copa do Mundo, os Estados Unidos ficaram fora do Mundial de 1938, mas enquanto isso, o futuro herói da USMNT começava a trilhar os primeiros passos no futebol. Aos 14 anos, Joe Gatjens ingressava no Etoile Haïtienne, um dos fundadores da Ligue Haïtienne, pois antes de 1937/38 apenas a capital Porto Príncipe contava com um torneio. Treinando na equipe, esperou quatro anos para estrear no time principal e logo se destacou pelos gols, viradas e pelo primeiro título nacional do time. No ano da conquista, participou, talvez, do maior jogo do campeonato nacional, quando a equipe perdia por 3 a 0 para o tradicional Racing Club Haïtien, e conseguiu uma virada, com dois tentos de Joe, incluindo o último no final da partida. Dois anos depois, conquistou a segunda taça nacional.
Durante a trajetória inicial de carreira, o mundo vivia o caos, com a Segunda Guerra Mundial assombrando o mundo, com invasões, conflitos e mortes. Os Estados Unidos era membro dos chamados países Aliados, ou seja, muitas coisas no país pararam. Isso fez com que a seleção nacional ficasse entre setembro de 1937 e julho de 1947 sem entrar em campo. Dentro do território, a American Soccer League continuava com a disputa interna, sendo que o Brookhattan conquistou o último título da ASL no período da Segunda Guerra, no meio de 1945 (em setembro, a guerra teve desfecho).
Em reconstrução, a vida voltava a entrar nos eixos dos países guerrilheiros. Joe Gatjens, ainda no Haiti, não via possibilidade de se sustentar apenas do futebol. Resolveu partir para a terra do Tio Sam, após ganhar uma bolsa de estudos do governo haitiano na Columbia University para estudar contabilidade. Foi então que justamente o Brookhattan surgiu na vida de Joe: ele ingressou no clube de futebol e trabalhava no restaurante do dono do clube. Não há informações se ele conseguiu o emprego como jogador ou lavador de pratos primeiro, mas eventualmente se tornou um dos destaques da equipe que buscava reconquistar o título americano. Fez catorze gols na época de estreia, dez na seguinte e em 1949/50 foi artilheiro da ASL com 18 tentos. O sucesso chamou atenção de Walter Bahr, jogador da seleção e filho de alemães, que sugeriu a convocação a Bill Jeffrey, treinador da equipe nacional. Gaetjens havia jogado duas partidas pela seleção do Haiti em 1944, mas as naturalizações eram bem flexíveis na época, o que deu a chance de ser convocado para uma campanha histórica onde marcou seu nome.
Antes do haitiano Joe Gaetjens, Jeffrey, que contava com uma seleção semiamadora, resolveu pinçar outros jogadores estrangeiros que estavam pelo país, como o escocês McIlvenny, o belga Maca e o polonês Wolanin, que acabaram sendo titulares na Copa de 1950. A iniciativa dessa adesão veio muito pelas derrotas acachapantes contra o México nas Eliminatórias.
A estreia da USMNT foi contra a Espanha, na Vila Capanema, em Curitiba. La Furia era favorita demais para o jogo, mas sofreu para furar a forte retranca que abriu o placar com Pariani, logo no início da partida. O sufoco espanhol “prejudicou” o jogo de Gaetjens, que teve que ajudar na defesa, mesmo sendo atacante e vivendo em uma época tática diferente. Aos 80 minutos, a Espanha empatou e o cansaço (ou desânimo) abateu os estadunidenses. Os espanhóis marcaram outros dois gols nos cinco minutos seguintes. Apesar da derrota, os EUA saíram satisfeitos de campo, sentindo uma competitividade na equipe, muito pelo quarteto estrangeiro.
A zebra histórica
Em uma Copa do Mundo, a geopolítica sempre está presente, e assim não seria diferente no ‘clássico’ do colonizador contra o colonizado: Inglaterra x Estados Unidos. O jogo tinha duas barbadas nas casas apostas: vitória ou goleada da Inglaterra!
Doze mil pessoas compareceram ao estádio Independência, em Belo Horizonte, para ver os ingleses em campo, os inventores do futebol. Havia também, claro, a curiosidade sobre o que veriam da equipe da América do Norte. O jogo começou sem ninguém controlando a partida de maneira incisiva, com a Inglaterra sem pressa e os Estados Unidos com todo time atrás da linha do meio-campo. Gaetjens e companhia queriam uma chance para tentar finalizar. Defenderam muito e eis que a oportunidade surgiu, como descreve Max Gehringer no fascículo 4 do especial da Revista Placar, “A saga da Jules Rimet – As histórias das Copas de 1930 a 1970”: “O médio McIlvenny, quase na linha do meio do campo, cobrou um lateral para Bahr. Pressionado, ele levantou a bola na direção da área adversária e Willians saiu para defender, observado pelo zagueiro Ramsey. Foi quando o haitiano Gaetjens atirou-se sem medo e, com um toque de cabeça e alguma sorte, desviou-a das mãos do goleiro”. O haitiano que nasceu dois meses antes da primeira partida oficial da seleção americana marcou o nome nas Copas. Nem mesmo a pressão inglesa conseguiu desfazer a que para muitos é a maior zebra das histórias dos Mundiais. Toda essa questão alheia ao campo, aumentou o status da partida. Ao apito final do italiano Generoso Datillo, o gramado do Independência foi tomado pelos mineiros presentes, carregando os novos heróis nos ombros. Entre eles, Joe Gaetjens, que vivia o êxtase da sua vida. O ponto de partida para novas aventuras.
Na última rodada, o Chile era o adversário na tentativa de classificação, no Maracanã, mas os americanos foram derrotados por 5 a 2. Foi um jogo de comemoração, apesar da derrota, pois a história já estava escrita. O confronto contra os ingleses ganhou ares cinematográficos desde o apito final e Hollywood, obviamente, não deixou isso passar, mesmo que demorasse 55 anos para lançarem o filme “The Game of Their Lives” (no Brasil, intitulado “Duelo de Campeões”), que demonstra todo o contexto da formação do elenco e características pessoais dos jogadores. Joe Gaetjens foi interpretado pelo conterrâneo Jimmy Jean-Louis. No filme, houve polêmica em torno do personagem haitiano, pois Joe era retratado como um homem negro, de tez mais escura, ao invés de mestiço. Além disso, na obra, o vodum (religião de origem africana) é sugestionada a Gaetjens, sendo que ele foi criado em família católica. Os estereótipos foram criticados por familiares do jogador.
O fim inesperado
Após o sucesso na Copa, Gaetjens conseguiu obter uma oportunidade e partir para uma aventura na França, para atuar no Racing Club de Paris e no Olympique Alès. Após três temporadas retornou ao Etoile e para a seleção haitiana, onde fez um jogo pelas Eliminatórias da Copa do Mundo 1954, em dezembro de 1953, contra o México. Pelo clube, teve três anos para encerrar a carreira, até que decidiu parar devido ao nascimento do primeiro filho.
Gaetjens certamente esperava seguir sua vida de maneira tranquila e criar o filho da maneira como foi criado. Mas a política, que de alguma forma contribuiu para as coisas boas que aconteceram com Gaetjens em sua vida e carreira, também foi decisiva para o seu fim. Sete anos depois do nascimento do filho, Joe foi preso pela Tonton Macoute, polícia secreta local, que era comandada pelo presidente François “Papa Doc” Duvalier, que havia derrotado Louis Déjoie, um parente distante de Joe, que ele inclusive apoiou. Foi dado como desaparecido. Não se sabe ao certo se foi executado ou morreu pela precariedade da prisão. Morto sob a tutela do Estado e por ser um militante político oponente ao governo, Joe Gaetjens deixou seu nome para sempre, como símbolo esportivo que trabalhou para ser, mas usado de maneira sanguinária para fins políticos.